A tão aguardada reforma tributária, em sua busca por um sistema mais justo e simplificado, prometeu revolucionar a forma como o Brasil lida com seus tributos. No entanto, a poeira levantada pelo debate revela uma face, no mínimo, controversa: a sombra da arrecadação que parece se sobrepor à tão almejada simplificação.
A promessa de unificação de impostos, com a criação do CBS e do IBS, por exemplo, ainda esbarra na realidade de um período de transição prolongado, onde os atuais impostos, como PIS, COFINS, IPI, ICMS e ISS, continuarão a existir, configurando um cenário de ainda maior complexidade para o contribuinte. Some-se a isso a criação do Imposto Seletivo, cuja destinação pouco transparente levanta sérias dúvidas sobre a sua finalidade e eficácia.
Diante desse cenário, cabe questionar se a reforma tributária está realmente comprometida com a simplificação e a justiça fiscal ou a torna refém da necessidade incessante de arrecadação, mesmo que às custas de um sistema tributário cada vez mais complexo e distante da realidade do cidadão?
E enquanto a reforma tributária busca seus rumos em meio a debates e controvérsias, uma outra questão essencial exige atenção: a imprevisibilidade dos desastres naturais e o alto custo que impõem ao país, ano após ano.
As tragédias climáticas se sucedem, deixando um rastro de destruição e evidenciando a fragilidade brasileira frente a eventos extremos. Nesse contexto, a gestão eficiente dos recursos públicos torna-se ainda mais urgente. Afinal, de que serve a utopia de um sistema tributário simplificado se os recursos arrecadados não chegam às áreas prioritárias, como a prevenção e o enfrentamento aos desastres naturais?
Os números são alarmantes. Em 2024, o governo federal mobilizou R$ 35 bilhões em créditos extraordinários para socorrer o Rio Grande do Sul, além de conceder R$ 23 bilhões em alívio fiscal. No âmbito nacional, os créditos orçamentários para eventos climáticos extremos atingiram R$ 42,9 bilhões no mesmo ano. Esses recursos emergenciais comprometem o planejamento orçamentário e a capacidade de investimento em áreas essenciais, criando um ciclo vicioso que impede o desenvolvimento do país.
A tragédia de Petrópolis, em 2022, ilustra a crueldade da falta de preparo. Dois anos após o desastre que ceifou 235 vidas, a reconstrução ainda se arrasta, com milhares de pessoas dependentes de aluguel social e obras inacabadas. É um Este cenário que se repete em escala nacional. 93% dos municípios brasileiros sofreram algum tipo de desastre natural entre 2013 e 2022, resultando em mais de 4,2 milhões de pessoas desalojadas e danos materiais que ultrapassam R$ 26 bilhões apenas no setor habitacional.
As enchentes deste ano no Rio Grande do Sul exemplificam a magnitude do problema, afetando 90% do estado e paralisando sua atividade econômica. A perda de arrecadação, que chegou a 40,9% em alguns municípios, compromete ainda mais a capacidade de resposta do poder público, perpetuando um ciclo de vulnerabilidade.
A gestão de recursos para lidar com desastres é frequentemente marcada por entraves burocráticos e falhas na execução de políticas públicas. Apesar da existência de mecanismos federais de auxílio, sua implementação raramente se traduz em ações rápidas e efetivas. A necessidade constante de liberar recursos emergenciais sobrecarrega o orçamento público, comprometendo o planejamento de longo prazo e a capacidade de investir em medidas preventivas.
A discrepância entre o financiamento de campanhas eleitorais e a alocação de recursos para gestão de riscos e desastres naturais revela uma inversão de prioridades preocupante.
Enquanto o Fundo Eleitoral recebeu, em 2024, R$ 4,9 bilhões, a Lei Orçamentária Anual (LOA) destinou R$ 4,69 bilhões para a gestão de riscos e desastres naturais, valor aparentemente robusto, mas que na prática se mostra insuficiente diante da gravidade do problema. A situação se torna ainda mais grave ao constatarmos que, apesar da previsão orçamentária, apenas R$ 507,5 milhões foram efetivamente pagos até maio de 2024, o equivalente a míseros 10,8% da verba destinada a essa finalidade.
Dados do Tribunal de Contas da União (TCU) mostram que, entre 2012 e 2023, mais de um terço dos recursos destinados a ações de resposta, recuperação e prevenção a desastres não chegaram ao seu destino. Essa negligência contrasta fortemente com a agilidade na liberação de recursos para as eleições, expondo uma falta de compromisso com a construção de um sistema eficiente de prevenção e resposta a desastres naturais.
A reforma tributária, em sua configuração atual, falha em assegurar que os recursos arrecadados serão canalizados para áreas cruciais, como a prevenção de desastres.
O Imposto Seletivo exemplifica essa lacuna ao carecer de vinculação específica, transformando-se em um "Cavalo de Troia Fiscal" - prometendo seletividade, mas potencialmente abrindo portas para tributação indiscriminada. Agravando esse cenário, a insatisfação dos estados com a perda de autonomia arrecadatória e a opacidade na distribuição dos novos recursos culminaram na aprovação do artigo 136 pela EC 132/2023.
Este artigo, introduzido no “apagar das luzes”, permite que aqueles que possuíam, em 30 de abril de 2023, fundos destinados a investimentos em obras de infraestrutura e habitação, possam instituir contribuições semelhantes, não vinculadas ao novo imposto sobre bens e serviços. Embora essa medida tenha sido uma concessão para aplacar os temores dos estados quanto à perda de receitas, ela adiciona mais uma camada de complexidade ao já intrincado sistema tributário em formação.
No entanto, essa contribuição poderia ser uma oportunidade para corrigir a ausência histórica de um financiamento consistente dedicado à prevenção e recuperação de desastres ambientais. Ao invés de se tornar mais um ônus para o contribuinte ou um mero instrumento de compensação de receitas estaduais, ela poderia ser direcionada, ao menos em parte, para a criação de um fundo específico voltado à resiliência contra desastres naturais. Tal fundo poderia contar com gestão transparente e participação social, seguindo exemplos internacionais bem-sucedidos como o Disaster Relief Fund nos Estados Unidos e o fundo específico para desastres no Japão.
A sucessão de tragédias anunciadas no Brasil deve servir como um alerta urgente. A EC 132/2023 abre uma janela de oportunidade para romper o ciclo vicioso de destruição e gastos milionários com reconstrução. É imperativo agir com determinação, transformando essa contribuição em um fundo específico para prevenção e recuperação de desastres ambientais, com foco na prevenção e gestão eficiente dos recursos.
O Brasil não pode mais se dar ao luxo de apenas reagir às tragédias. É hora de uma mudança de paradigma na gestão de riscos e desastres naturais, alinhando a reforma tributária com as necessidades reais do país e garantindo que os recursos arrecadados sejam efetivamente aplicados na proteção da população e na construção de um futuro mais resiliente. Só assim poderemos transformar a promessa de um sistema tributário mais justo e eficiente em uma realidade que beneficie verdadeiramente todos os brasileiros.
Antonio Payão, Daniel Ribeiro e João Pedro Tavares são advogados do Daudt, Castro e Gallotti Olinto Advogados.
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