Decretação de falência das empresas?
É consabido que a pandemia decorrente do coronavírus vem provocando desastrosos efeitos sobre as empresas dos diferentes ramos da economia, em especial no que diz respeito aos setores de prestação de serviço, como por exemplo o turismo, aviação, educação e etc.
Neste ponto, a crise tem se mostrado bastante igualitária, pois atinge não só os pequenos e médios negócios, como também as grandes empresas, como é o caso da Universidade Cândido Mendes, Grupo Educação Metodista, Hotel Maksoud Plaza, os quais não resistiram e acabaram necessitando se socorrer das vias da recuperação judicial.
O cenário pode ser atestado pelos dados disponibilizados pelo Serasa Experian (Jan/20 a Maio/21), pois de um total de 1.550 pedidos de Recuperação Judicial (RJ) apresentados no período, o setor de serviços lidera o indigesto “ranking” com um total de 786 pedidos, o que representa mais de 50%. [1]
Sujeitam-se ao plano de soerguimento não só créditos particulares existentes na data do pedido de recuperação judicial, como também os créditos tributários, embora devido a indisponibilidade do interesse público, salvo legislação em contrário, os procuradores não estejam autorizados a proceder com qualquer negociação do crédito de natureza fiscal.
Além do mais, os créditos fiscais apresentam um rito próprio para a cobrança das inscrições fiscais, devendo ser observado que, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) desafetou o REsp nº 1.694.261 (Tema 987), entendendo, assim, que em decorrência das alterações promovidas pela Lei nº 14.112/2020, a execução fiscal deve ser suspensa pelo deferimento da recuperação judicial e, portanto, que a Fazenda Pública pode solicitar a adoção de atos de constrição patrimonial em face da empresa, competindo ao juízo da recuperação judicial o controle dos atos constritivos determinados em sede de execução fiscal.
O cenário acima, por óbvio, será desafiador no que se refere a negociação do plano de recuperação judicial com os demais credores privados, considerando as sucessivas penhoras que poderão recair sobre os bens móveis e imóveis (escassos) das empresas de recuperação judicial.
Além disso, mais um ponto que tornará o processo de RJ ainda mais desafiador diz respeito ao recente entendimento de alguns tribunais no que se refere a obrigatoriedade de o devedor apresentar, após a juntada do Plano devidamente aprovado pela Assembleia Geral de Credores, a certidão negativa de débitos (federal, estadual e municipal), sob pena de indeferimento do Plano de Recuperação Judicial (artigo 57 da Lei nº 11.101/05).
Por muitos anos, a jurisprudência do STJ relativizava tal exigência por entender que o devedor não poderia ser responsabilizado pela não apresentação da certidão de regularidade fiscal, uma vez que, à época, inexistente legislação que disciplinasse o parcelamento em sede de recuperação judicial (REsp 1.187.404).
Contudo, posteriormente, sobreveio alteração do quadro legislativo com a edição da (a) Lei nº 13.043/2014 (regulamentada pela Portaria PGFN nº 01/2015) e, inclusive, recentemente, rerratificada com a publicação da Lei nº 14.112/2020; (b) Lei nº 13.988/2020, as quais passaram a regular as hipóteses de parcelamento e transação tributária dos débitos tributários sob responsabilidade de empresário ou sociedade empresária em processo de recuperação judicial, o que, inclusive, foi um dos fundamentos utilizados pelo Ministro Luiz Fux para na Reclamação nº 43.169/SP.
Nesse sentido, indaga-se, será que as inovações legislativas em referência são suficientes para exigir-se do devedor a apresentação da certidão de regularidade fiscal? Por uma análise literal da Lei nº 11.101/05, em seus dos artigos 57 e 58, bem como do Código Tributário Nacional, em seu artigo 191-A, a conclusão seria positiva.
Contudo, não se pode cerrar os olhos para o real cenário fático das empresas que se encontram em recuperação judicial.
Quando as sociedades empresárias passam por toda e qualquer crise, seja ela provocada por condições de gerência deficitária, ou mesmo nos casos alheios ao seu controle, como é o caso da pandemia, as obrigações tributárias, devido aos elevados encargos e consectários legais (juros, multa e encargo legal), bem como a complexidade do atual sistema tributário nacional, são as primeiras dívidas que deixam de ser adimplidas pelas empresas.
Exigir-se das empresas em recuperação judicial a obrigatoriedade de apresentação da certidão de regularidade fiscal é algo praticamente impraticável, sendo certo que, basicamente, coagir a empresa para que declare ser devedora da integralidade do passivo tributário mediante a confissão da dívida, seja pelo parcelamento ou transação tributária, como condição para o deferimento do Plano de Recuperação Judicial, não parece ser o meio mais adequado para alcançar-se as finalidades para qual a recuperação judicial foi criada (artigo 47, da Lei nº 11.101/05).
A legislação em questão prevê etapa processual cujo iter a empresa em recuperação judicial deve percorrer, como o mito de Dâmocles, com uma espada sobre a cabeça, pois se não apresentar a certidão de regularidade fiscal, a consequência será a decretação da falência, ao passo que mesmo assumindo ser devedora da integralidade do débito para fins de obtenção da certidão de regularidade fiscal, se não obtiver meios de honrar com o pagamento das prestações do parcelamento e/ou transação, será excluída do referido instrumento e, igualmente, a consequência prática será a falência da empresa.
Assim, tal como já foi reconhecido pelo STJ (REsp nº 1.864.625/SP), após a edição das Leis nº 13.988/2020 e 14.112/2020, a exigência da apresentação da certidão de regularidade fiscal como condição para o deferimento do pedido de recuperação judicial não se mostra adequada, tampouco necessária, para os fins de adimplemento da obrigação tributária. Inclusive, acaba por desvirtuar os próprios objetivos e finalidades do processo de recuperação judicial, pois uma vez decretada a falência da sociedade empresária, dificilmente a Fazenda Pública encontraria meios de receber o crédito tributário, pela singela razão de que são classificados em terceiro lugar na ordem de preferências dos créditos a serem pagos no concurso de credores (art. 83, inciso III da Lei n 11.101/05). E, tal como recentemente reconhecido pelo STJ (REsp nº 1.694.261), em razão das modificações introduzidas pela Lei nº 14.112/2020, diferentemente das ações e execuções movidas por credores particulares, as execuções fiscais ajuizadas pela Fazenda Pública não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial (art. 6º, caput e § 7º, da Lei 11.101/05 e artigo 187 do CTN), ou seja, não fica desprovida dos meios próprios para cobrança dos créditos de sua titularidade.
Não se está aqui procurando legitimar o inadimplemento das obrigações tributárias, pelo contrário, apenas propiciar meios saudáveis em que as empresas em recuperação judicial, isso é, em delicadíssima situação financeira, consigam honrar de forma factível suas obrigações existentes com a Fazenda Pública, sem impossibilitar o alcance e objetivos colimados pela Lei de Recuperação Judicial.
Portanto, “(...) a superação da crise empresarial mediante a execução do plano de recuperação é o fator que permitirá a continuidade da atividade produtiva e, consequentemente, viabilizará a regularização fiscal do devedor, além de contribuir para a geração de empregos e para o desenvolvimento econômico do País” (REsp nº 1.864.625/SP), razão pela qual, mesmo após as inovações legislativas, ainda se afigura ilegal a exigência da certidão de regularidade fiscal como condição para o deferimento do plano de recuperação judicial.
[1] Recuperações Judiciais Requeridas. Disponível em: https://www.serasaexperian.com.br/conteudos/indicadores-economicos/. Acesso em 18/05/2021.
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